Vinhos para o queijo “Serra da Estrela Velho”
O enólogo Virgílio Loureiro fez uma prova de degustação do Queijo Velho Vale da Estrela – DOP e recomenda os vinhos que fazem uma “harmonização completa” com o queijo Serra da Estrela Velho.
A escolha dos vinhos para acompanhar queijos, ou outro alimento qualquer, não é consensual nem suportada por regras de base científica inquestionável.
O velho ditado popular: “Gostos não se discutem” confirma-o à evidência.
No entanto, eu gosto sempre de acrescentar algo mais ao ditado, dizendo: “Gostos não se discutem, mas educam-se”.
Esse processo educativo passa por estarmos atentos às sensações que o queijo e o vinho nos provocam quando nos deliciamos com os dois. Se o queijo é muito bom e o vinho também, o resultado é sempre satisfatório, mas quando provamos com atenção apercebemo-nos que, às vezes, o resultado não é tão gratificante quanto esperávamos. Outras vezes, quando a escolha do vinho é perfeita, tanto o queijo como o vinho sabem melhor do que isolados.
Características do queijo
Antes de falar dos vinhos para o queijo Serra da Estrela Velho importa falar deste notável queijo curado de leite cru de ovelha e das suas principais características.
Uma das mais importantes é o seu odor intenso e penetrante, que põe as papilas a salivar aos apreciadores e faz fugir a sete pés quem não gosta de queijo.
A outra característica essencial é o seu sabor forte, onde sobressai a textura macia e levemente granular, as notas salgadas e picantes, que perduram na boca por muito tempo, e o aroma complexo, que fascina os apreciadores.
Com estas particularidades o queijo curado enche a boca de sabores e aromas fortes e causa alguma agressividade no palato, obrigando a dar a maior atenção à escolha do vinho para o acompanhar. É por esta razão que se costuma colocar numa tábua de queijos um acompanhamento doce, como compota ou fruta fresca, que serve para limpar o palato e atenuar a intensidade de sabores. No entanto, quando se acompanha o queijo com vinho já não é preciso colocar o doce na tábua, pois o vinho tem a mesma função.
Compreende-se, agora, que a regra mais importante a ter em conta seja evitar que o vinho agrida o palato ou avive a agressividade dos sabores do queijo. Os vinhos de sabor muito intenso, de elevado grau alcoólico e algo adstringentes, como os tintos novos e muito taninosos, não são os recomendáveis, ao contrário do que muita gente pensa, convicta que um queijo forte deve ser acompanhado por um vinho forte. Se provarmos com atenção perceberemos que deixa um amargo na boca devido à intensificação de sabores que o sal do queijo provoca no sabor do vinho. A adstringência dos taninos também irá colidir com as proteínas do queijo causando uma sensação desagradável (não nos esqueçamos que para tratar as proteínas das peles, na indústria dos curtumes, se usam taninos em grande quantidade, numa reacção idêntica à das proteínas do queijo com os taninos do vinho tinto na nossa boca).
O estilo dos vinhos
Torna-se assim compreensível que para contrariar a agressividade dos sabores intensos deixados no palato pelo queijo se deva recorrer a vinhos suaves e aromáticos ou a vinhos doces, de preferência com complexidade aromática, como muitos brancos ou os licorosos doces, brancos ou tintos.
Para que a harmonia de sabores seja ideal importa ter em conta o estilo, que é muito mais importante do que a marca, o ano de colheita ou a região onde o vinho é produzido. Analisemos com maior detalhe o estilo dos vinhos recomendados.
Os vinhos brancos
Entre os brancos jovens são preferíveis os secos que não sejam excessivamente ácidos, como os provenientes de castas aromáticas, que conferem notas florais e frutadas aos vinhos.
A sensação “adocicada” que os aromas florais do vinho provocam contrasta da melhor forma com o salgado e o picante do queijo. São exemplos deste estilo os vinhos do Dão da casta Malvasia-Fina, os da Beira Interior de Síria ou Fontecal, os do Minho de Alvarinho ou de Loureiro, os da Bairrada de Maria Gomes, os do Ribatejo de Fernão Pires e os do Alentejo de Antão Vaz ou de Síria. Outros brancos adequados para acompanhar o queijo Serra da Estrela Velho são os fermentados em barricas de carvalho, que ficam com uma textura untuosa, com a acidez disfarçada pela madeira e com corpo suficiente para enfrentar, sem agredir o palato, os sabores fortes do queijo. Também são recomendáveis as chamadas “colheitas tardias”, feitas normalmente com uvas brancas muito doces e que, depois da fermentação, ficam com açúcar residual e com aromas bastante complexos. Finalmente há os brancos velhos, particularmente os do Dão à base de Encruzado, Cercial ou Bical, cuja extrema complexidade aromática provoca um diálogo perfeito com os aromas e sabores do queijo.
Os vinhos tintos
Pelas razões já expostas os vinhos tintos não são muito recomendáveis para acompanhar o queijo Serra da Estrela Velho, mas para os indefectíveis adeptos que não os dispensam também é possível sugerir alguns.
A regra básica na sua escolha é evitar os que têm elevada concentração de taninos e são muito ácidos. Por isso, vinhos com pouca cor, ligeiros, pouco ácidos e com final levemente adocicado são os mais recomendáveis.
Os vinhos licorosos
Os vinhos licorosos desde sempre foram considerados a companhia ideal de queijos fortes, como o Serra da Estrela Velho. Porém, nem todos são recomendados. Os doces, que contrastam de forma brilhante com o sabor do queijo, são os ideais. Como os vinhos licorosos portugueses são reconhecidamente dos melhores do mundo, importa detalhar a sua relação com os queijos curados de leite cru de ovelha. Entre os vinhos do Porto, são especialmente recomendáveis os “tawnies”com alguma idade, de preferência com mais ou 10 anos, tanto brancos como tintos. O processo de envelhecimento que sofrem retira-lhes grande parte dos taninos e confere-lhes uma enorme complexidade aromática e sápida, que provoca uma harmonia surpreendente com o queijo curado. Os portos “vintage” e os “late bottled vintage (LBV)” já não são tão recomendáveis, principalmente quando são jovens, dada a sua adstringência, causada pela elevada concentração de taninos que têm. Os moscatéis, de Setúbal ou do Douro, são também companhias ilustres dos queijos curados, principalmente quando já têm mais de 10 anos de envelhecimento. Finalmente os licorosos da Madeira, ainda que menos conhecidos e mais ácidos do que os anteriores, são excelentes para acompanharem estes queijos, principalmente os doces e velhos, das castas Malvasia e Boal.
O momento de cada vinho
O facto de haver tantos e variados vinhos para acompanhar o queijo de ovelha curado, obriga a ter em conta os momentos em que os diversos estilos devem ser servidos. Os vinhos secos, brancos ou tintos, são recomendados para acompanhar o queijo numa refeição ligeira ao fim da tarde. Também podem ser servidos às refeições, mas não como sobremesa. Por isso, costumam ser servidos como pré-sobremesa, à maneira dos franceses, a que se segue um doce ou uma fruta. Quando o queijo finaliza a refeição, deverá ser sempre servido com um vinho doce, de preferência licoroso, e tanto mais velho quanto mais requintado for o momento.
A harmonização completa
A escolha do vinho certo para acompanhar o queijo pode assumir várias facetas. A mais simples, e normalmente a utilizada, tem apenas em conta a harmonia sensorial entre queijo e vinho. Porém, há outras harmonias que vão para além do prazer físico. Assim, não será uma escolha perfeita optar por um vinho industrial para fazer companhia a um queijo tão tradicional, requintado e produzido de forma tão artesanal, como o Serra da Estrela Velho. Respeitar os estilos de produção e harmonizá-los eleva a escolha do vinho aos prazeres do espírito. Do mesmo modo, optar por vinhos da região de produção do queijo, tanto do Dão como da Beira Interior – alguns deles companhias perfeitas para o queijo – é valorizar a escolha e dar prazer ao espírito. Um grande branco velho do Dão a acompanhar um aprimorado queijo Serra da Estrela Velho é um prazer para os sentidos e um regalo para o espírito de um beirão, pois ambos são obras-primas da gastronomia e cultura portuguesas nascidas na sua terra!
Virgílio Loureiro