O queijo e a literatura – Paulo Neto
Paulo Neto, director da revista literária Aquilino e editor da plataforma Rua Direita é o autor do texto sobre a relação entre o queijo e a literatura.
“Queijo com pão faz homem são” é saber de muito entendimento popular…
“Com franqueza…”, na boca do povo é também “Pão pão, queijo queijo”.
Ora se o queijo de mãos dadas anda com o alimento primordial, atestado pela sapiência milenar do nosso povo, para nos proporcionar saúde e entendimento, de que mais precisaremos nós?
Diz-nos o prudente “Houaiss” que Bordaleira tem origem obscura e vem talvez de Bordalo, nome próprio. Pois que tal seja e tenha sido o Sr. Bordalo, Zé, Tonho ou Manel, a dar-lhe a raça por miscigenações diversas, apuradas ou do mero acaso fruto. Abençoado!
Gil Vicente, talvez o pai da moderna dramaturgia mundial, na sua Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela, representada a Dom João, o terceiro, por horas do parto de sua Senhora e Rainha Dona Catarina, por volta de 1527… lá se vai adiantando na memória, e fazendo da Serra que nos deu a bordaleira sua personagem, assim se lh’ ouve falar:
“Que tal leite como o meu / Não no há em Portugal; / Que tenho tanto e tal, / E tão fino Deos m’o deu…”
Gonçalo o pastor lhe respondendo assertivo na sugestão das peitas a oferendar à “Rainha nossa Senhora”:
Há mister grandes presentes / Das villas, casaes e aldea. / Mandará a villa de Cea / Quinhentos quiejos recentes, / Todos feitos á candea, / E mais trezentas bezerras, / E mil ovelhas meirinhas, / E duzentas cordeirinhas, / Taes, que em nenhuas serras / Não nas acham tão gordinhas. / E Gouvea mandará / Dous mil sacos de castanha, / Tão grossa, tão sã, tamanha / Que se maravilhará / Onde tal cousa s’apanha…
De afiançado nós temos que a Serra de Estrela não nos deu só alturas, neves e Viriato… o leite das bordaleiras, nadas e criadas nos contrafortes e vales serranos, rebanhos por vezes se confundindo, de longe, com o granito cabonde, na sua lanífera mole majestosa, deu-nos o queijo que tanto palato revolteou, tanto olfacto fremiu e tanto Mestre inspirou.
Aqui me chego a Aquilino e se mais não bastasse, mão tente a “Andam Faunos pelos Bosques”, me poiso ao de leve, na descrição da pastora:
“Se bem que trigueirinha de rosto, a carne era branca, com leves tons de rosa nas conjunturas, doirada de velo loiro nas axilas e na região secreta. Estatura sobre o mediano, a sua cinta era tão estreita que cabia quase no acinho de fazer o queijo; tinha o ventre escorrido, seco, e as ancas desciam mais arredondadas e certas que os lados dum cantarinho; logo acima, os seios eram dois cogulos de coalho em que houvessem caído duas pétalas de rosa, e o pescoço, mais alto que de razão, parecia, na parte que se sobrepunha ao chambre, de andar à queima do sol e do vento, cingido duma ampla gargantilha de oiro velho. Todo o corpo, entre fresco e madurinho, tão enfeitado de graças, que se dissera de fidalguinha, de pastora não.”
Se até Eros nele bebe seu prazer… assim trigueira pastora com a cinta a caber num esconso acinho e os seios medidos a cogulo de coalho, de pétalas coroados.
Vamos então pelo Vale da Estrela…
Paulo Neto
Imagem do livro A Minha Terra de António Corrêa d’ Oliveira com desenhos de António Cordeiro